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sábado, 4 de novembro de 2017

Igreja Evangélica Curva de Rio

Talvez a minha dor, seja um teste para o seu amor.
(Sérgio Lopes)


- O que eu preciso fazer para herdar a vida eterna? – Esta foi a pergunta retórica feita por um mestre da lei judaica, afim de testar a sabedoria de Jesus. Serenamente, Cristo se voltou ao seu inquiridor, e também lhe fez uma indagação: - O que a lei diz sobre este assunto? Como você a entende?

- Pois bem! Respondeu o mestre da lei. – Eu devo amar a Deus sobre todas as coisas, com todas as minhas forças, com todo entendimento, com intensidade de coração e alma....

Os olhos de Jesus se fixaram no rosto do rabino, esperando pacientemente que a resposta fosse concluída...

- ... E... – Concluiu o mestre da lei – ... amar ao meu próximo como a mim mesmo!

- Ótima resposta! - Disse Jesus. – Aja sempre desta maneira, e para sempre a vida terás!

Acanhado com a simplicidade da resolução, o mestre da lei trouxe à baila um novo questionamento.

- Mas, Senhor.... Quem é o meu próximo?

E a esta nova sindicância, Jesus propôs uma reflexão, baseada numa história, que hoje, conhecemos muito bem...

Certa vez, um homem descia de Jerusalém para Jericó, quando no meio do caminho, foi atacado por assaltantes. Roubaram sua carteira, suas roupas e o seu cavalo. E então, eles o espancaram. Feriram seu rosto, maltrataram seu corpo, quebraram alguns ossos e abriram inúmeras feridas. Quando se cansaram da barbárie, simplesmente foram embora, deixando para trás, o pobre moribundo. Olhos cerrados pelo inchaço. Boca vertendo sangue. Pulmões perfurados pelas costelas quebradas.

Enquanto arfava em desespero, tentando inutilmente movimentar as pernas, o homem ferido percebeu a aproximação de alguém. Forçou os olhos para a identificar o transeunte. Teve medo que os criminosos tivessem retornado. Mas, se acalmou. O vulto bonachão que se aproximava era familiar. Seu jeito de andar não deixava dúvidas. Sim era ele. Graças a Deus! O caminhante solitário era famoso pelo “enorme” coração. Um homem respeitado pela sociedade e temente ao Senhor Deus. Suas mãos ofereciam sacríficos diários no templo. Um sacerdote. “O” sacerdote. O homem generoso que intercedia a Deus pelos pecados do povo. A voz que instruía a congregação sobre os preceitos da lei. E havia uma frase que ele repetia sistematicamente em seus adoráveis sermões... Como era mesmo?...  o homem ferido se esforça para lembrar... A dor na fronte atrapalha os pensamentos... Ah! Sim! Como esquecer... A voz serena do sacerdote ecoa pela sua mente esquálida: - Ame a Deus sobre todas as coisas, e o próximo como a ti mesmo.... A esperança aqueceu seu coração vacilante. – Graças aos céus... Um homem bom foi enviado em meu socorro.... Eu mesmo... - pensou o homem caído - ... já fui ter com ele diversas vezes este ano.... Certamente vai me reconhecer... Com certeza virá me ajudar...

Mas, para a surpresa (e desespero) do esvaído, o velho sacerdote se fez de rogado. Suas mãos santificadas não deveriam tocar em um cadáver (mesmo que a respiração pesarosa do morto invalidasse este argumento). – Deus me proteja de toda imundícia. E me livre de qualquer contaminação – Orou o sacerdote. Fechou seus olhos para a necessidade do homem caído, e simplesmente, seguiu seu caminho, sem (nem ao menos), olhar para trás.

Não havia tempo para decepção. A mente do pobre homem começava a flertar com o vazio. A vida esvaindo de seu corpo como o ar que escapa de um balão furado. Diversos pontos de hemorragia o fragilizam a cada segundo. Ele mal conseguia se manter consciente. Qualquer ação física seria impossível. Aquele trecho da estrada, se revelava como o ponto de encontro com a morte. Ou não....

- Ah! Meu bom Deus.. Não pode ser... A menos que meus olhos estejam de traquinagem, aquele homem que se aproxima é um levita do Templo.... Pense em alguém generoso, e seu rosto será logo lembrado.... Estou salvo! Certamente, um homem tão devotado não me negará ajuda...

O levita se aproximava rapidamente. Seus passos ágeis condiziam com a vida devocional que levava. Sempre apto para o trabalho. Constantemente desperto as necessidades da congregação. Ele parecia ter superpoderes. Estar em dois lugares ao mesmo tempo. Abria a porta do templo pela manhã, e acendia as luzes do candelabro quando a noite chegava. Varria o átrio. Limpava as janelas. Lustrava os bancos. Trocava o refil de papel higiênico dos banheiros. Sempre pronto. Sempre presente. Orava e vigiava com a mesma devoção. Louvava e trabalhava com a mesma intensidade. Areava panelas e afinava instrumentos. Mãos calejadas pelo trabalho, porém, sensíveis para um toque gentil. E como cantava bonito! Que afinação.... Que sensibilidade... O homem ferido sentiu um calor reconfortante emanar de seu coração. Seus ouvidos perceberam a música no ar...  Sim, é o levita... Ele sempre está cantarolando esta canção quando visito o templo... Deus seja louvado pelo socorro bem presente! 

Glória e majestade há em sua obra;
E a sua justiça permanece para sempre.
Ele fez memoráveis as suas maravilhas;
Compassivo e misericordioso é o Senhor.
Dá mantimento aos que o temem;
Lembra-se sempre do seu pacto.

Palavras bonitas nada valem sem a ação. E desta vez, o levita não está disposto a ajudar. Seu tempo é escasso. O templo precisa de sua mão de obra especializada. Não há espaço na agenda para atendimentos emergenciais à beira da estrada. Outra pessoa pode fazer este trabalho. - Deus conta comigo para obras mais relevantes. E enquanto o levita se reveste de desculpas esfarrapadas e argumentos inválidos, o homem ferido percebe a canção se afastando cada vez mais... Até sumir por completo, como a fumaça de uma chaleira numa manhã nebulosa de inverno....

A dor fica cada vez mais intensa. E, então, desaparece. Ele sente seu corpo anestesiado. Os olhos se escurecem, e os sons a sua volta, parecem se silenciar. – Então, é assim que tudo termina... - Pensa ele. E a vida se apaga. Trevas. Escuridão. Nada.

O sacerdote nesta história representa a essência da religião corrompida. O grande mal do mundo. Imersa em demagogias. Alicerçada em dogmas e doutrinas. Cega pela própria devoção. Antropocêntrica. Mesquinha. A instituição acima do indivíduo. O bem comum ignorando as necessidades de cada um. Onde o “próximo” só tem valor quando se submete as ideologias de um sistema. Religiosidade seletiva e exclusivista. Opressora. Que insiste em colocar de volta as algemas que foram destrancadas lá na cruz.

A religião que orbita em seu próprio umbigo é uma afronta para Deus. O Senhor entregou seu único Filho em benefício do mundo inteiro. Ele deseja que todas as almas se salvem (João 3:16). Amor incondicional com abrangência universal. Jesus, o Filho de Deus, fez da inclusão o âmago de seu ministério. Ele tinha remédio para os enfermos. Pão para os famintos. Água para os sedentos. Descanso para os cansados. Abraços para os leprosos. Luz para os cegos. Direção para os perdidos.

E o que a religião tem para oferecer?

Geralmente, a resposta a este questionamento passa por um check list bem detalhado. É membro da nossa igreja? É dizimista? Manifesta dons? Pagou as taxas? Comprou os objetos? Tem diplomas?  O nome está no SPC? Tem pendências do passado? A qual família pertence? O que pode nos oferecer em troca?

Certa vez, ouvi uma pessoa se referindo a determinada igreja como sendo uma “curva de rio”. Segundo sua análise depreciativa, aquela comunidade aceitava em sua membresia qualquer "tipo" de pessoa. Tinha se tornado um antro de rejeitados, desajustados e problemáticos. Então, me virei para ela e perguntei com grande indignação: - Mas, não é exatamente para isto que serve a Igreja?

Igreja Evangélica Curva de Rio

Aí está um nome excelente, que resume bem a essência de nossa missão eclesiástica. Um verdadeiro imã para pessoas desprezadas, quebradas e infelizes. Pessoas que nada tem a oferecer. Feridas. Traumatizadas. Destruídas. Falidas. E o que a “IECR” teria para oferecer a elas? Exatamente o que recebeu de graça do Senhor Jesus Cristo, com a recomendação de distribuir (sem custos) aos necessitados.

- Cura aos enfermos.
- Liberdade aos cativos.
- Esperança aos desesperados.
- Paz aos oprimidos
- Carinho aos esquecidos
- Abraços aos imundos
- Oportunidade de redenção ao pecador.
- Socorro imediato aos feridos da estrada.

O sacerdote descrito por Jesus é o estereótipo do pensamento religioso, que caminha junto com a humanidade séculos afora. Como um camaleão mudando de cor, ele tem se adaptado à cada geração, nos tornando frívolos e apáticos as reais necessidades do próximo. Se alguém sofre, é porque Deus deseja assim. Se a dor lanceta o irmão “fulano de tal”, certamente é porque ele está em pecado. “Não tenha compaixão de quem está sendo castigado por Deus, porque, senão, Deus transferirá o castigo dele para você”.  Isto é sério? Nos orgulhamos em hastear estas bandeiras?  Em busca de santidade, oprimimos o pecador. Em nome de uma crença, descartamos o descrente. Pelo zelo irrestrito a uma doutrina, ignoramos quem precisa ser discipulado em amor.

Ah, o zelo.... Isto nos leva ao levita da história. Tão laborioso e cheio de virtudes. Imerso em preocupações decorrentes de suas atividades religiosas, se esqueceu do que realmente importa. Sua necessidade patológica de servir as grandes massas, o fazia ignorar as pessoas. Um louvor ao Senhor, e um descaso para com a necessidade do próximo. Sabe qual o resultado desta equação? Zero absoluto. Tiago 1:27 afirma que diante de Deus, uma religião só é verdadeira, pura e imaculada, quando os “religiosos” cuidam dos necessitados e se guardam da corrupção do mundo. Zelo e amor se complementam. Nunca se opõem. Pensamento e Ação. Fé e Obra. Amor e Zelo. O que eles tem em comum? Tudo. Indivisíveis.

Parte importante de nossa pregação é exatamente aquilo que fazemos. Em Colossenses 3:17, Paulo nos ensina que tanto nossas “palavras” quanto nossas “obras” deveriam ser embasadas no nome do Senhor Jesus, dando por ele graças ao Deus Pai. De fato, aquilo que fazemos grita tão alto que as vezes, nossas palavras sequer são ouvidas. E não se esqueça: - DEUS É AMOR. Agir em nome de Deus motivado por qualquer outro sentimento é uma afronta ao Senhor. Sino que tine sem propósito. Erro gritante. Consequências terríveis. E quem é atingido no final? Quem terá contas a prestar diante do tribunal divino? O “pecador confesso” ou “santo autodeclarado”?

Sacerdotes e levitas omissos, mesquinhos e egocêntricos. Religiosos vazios de Deus. Se dependesse deles, de suas crenças e dogmas, todo homem ferido morreria a beira do caminho. O lugar do bálsamo curador é "vertido" sobre as feridas, e não dentro de jarros incrustados de joias. Canções bonitas não vestem os órfãos. Orações fervorosas não enchem a barriga de crianças famintas. Nossa devoção pessoal não é a resposta para as mazelas do próximo. O amor não é leviano. E para a sorte daquele homem ignorado pelos religiosos de Jerusalém, em Samaria existia uma filial da “Igreja Evangélica Curva de Rio”.

Samaria. Capital de Israel. Após a morte de Salomão, seu filho Roboão aumentou drasticamente a carga tributária aplicada sobre a nação. Houve uma revolta popular que resultou numa Guerra Civil. A maior parte das tribos se uniram para declarar independência. Nascia o Reino do Norte. Jerusalém ficou ao sul, e assim, Samaria foi escolhida como a capital do novo império. Todos os levitas e sacerdotes haviam ficado em Judá, e o rei Jeroboão contornou o problema criando um novo sistema religioso, profissionalizando o ofício sacerdotal. Os judeus recriminavam a religiosidade de seus irmãos israelitas. Séculos se passaram, reis tiranos e religiosos irresponsáveis transformaram o Reino do Norte num antro de paganismo. Em 721 A.C, a Assíria conquistou Israel. Muitos israelitas foram deportados para terras estrangeiras. Em contrapartida, muitos estrangeiros foram trazidos para Samaria. Com o tempo, vieram os casamentos miscigenados e o nascimento de crianças mestiças. A linhagem dos hebreus tinha sido corrompida naquele território.  Nos anos seguintes, a rivalidade só aumentaria. Samaritanos tentaram impedir a reconstrução do templo em Jerusalém após o exílio judaico na Babilônia. Judeus escarneciam do templo samaritano construído no Monte Gerizim. E o ciclo sempre se repetia.

Um dos fatos mais interessantes desta rivalidade, é que Samaria sempre foi uma cidade refúgio para todos os foragidos da Judeia. Quando alguém se tornava “imprestável” para os judeus, Samaria estava com as portas abertas, oferecendo abrigo e segurança para os párias da sociedade judaica. Uma verdadeira curva de rio.

Dito isto, voltemos a estrada. Ou melhor, ao quarto de uma pequena pousada. É exatamente neste lugar, que o judeu assaltado e ferido abriu seus olhos dias depois do incidente. Teria ele morrido? Resumir-se-ia os céus à uma cama confortável num quartinho aconchegante? Enquanto tentava entender o que estava acontecendo, a porta se abriu, e um gentil camareiro adentrou com uma tina de água quente e panos limpos...

- Vejam só quem acordou – Disse ele.

- Onde eu estou? Como vim parar aqui? – Questionou o confuso homem, enquanto vistoriava o próprio corpo cheio de ataduras e bandagens...

A conversa entre eles foi longa, mas, vou resumir a história para vocês. Assim que perdeu a consciência (em decorrência dos múltiplos ferimentos), o viajante ignorado pelos religiosos, foi socorrido por um homem “realmente” bondoso, que não frequentava sinagogas e nem adorava no tempo de Jerusalém. Longe disto. Sua entrada em Jerusalém era vetada. Sua presença no templo era proibida. Sua adoração se resumia a uma “casinha” nas montanhas. Homem impuro. Miscigenado. Ele era samaritano. Um judeu preferia morrer a ser tocado por mãos tão imundas. O bom feitor sabia disto, e mesmo assim, não se esquivou da responsabilidade. Ajudar o próximo é um dever humanitário que excede a religião. O samaritano limpou os ferimentos do judeu moribundo. Improvisou curativos. Drenou o sangue da boca. Imobilizou a perna quebrada. Cuidadosamente o carregou nos braços e o colocou em seu transporte pessoal. Ele conduziu seu cavalo com esmero até a pousada mais próxima. Alugou o melhor quarto. Pediu ao camareiro que o ajudasse a levar o doente até a cama. Solicitou que um médico fosse chamado com urgência. Então, pagou o custo da hospedagem, a diária do médico e todo o receituário indicado. Deixou uma boa quantia de dinheiro para cobrir as despesas adicionais. E prometeu, que no retorno da viagem, voltaria para a pousada, afim de conferir o estado de saúde do homem ferido, e quitar qualquer débito pendente. Então, não havia necessidade de economia. Os melhores lençóis. Boas refeições. Visitas regulares de ortopedistas, clínicos e quantos profissionais fossem necessários...

Ao final da história, Jesus se voltou ao mestre da lei (frequentador assíduo do templo e amigo influente de muitos sacerdotes) e perguntou: - Qual dos três homens entendeu que a pessoa anonima  ferida e abandonada era o “próximo” do qual fala a lei?

- Bem, Senhor – Disse o rabino com voz acanhada – Creio que seja aquele que mostrou misericórdia para com o homem ferido...

- Tem certeza? – Ressaltou Cristo. – Não foi o homem revestido de santidade e honradez?

- Não... Senhor!

- Nem o homem devoto e zeloso pela Casa de Deus?

- Não... Senhor!

Pausa para reflexão. Era preciso cuidado para pronunciar as próximas palavras.

- O único homem nesta história a cumprir piamente a lei, amando à Deus e ao próximo, foi o... (urghhh... o som da ânsia reverberou na garganta)... foi o... (Urghhh, outra vez)...

- Exatamente! – Interrompeu Jesus. - Quer viver bem? No agora e no depois? Vai e faça o mesmo!

Nota: A “Igreja Evangélica Curva de Rio” está aberta diariamente, vinte quatro horas por dia, pronta para receber de braços abertos, todos aqueles que precisam de ajuda para se levantar, bem como aqueles que precisam aprender a como levantar alguém. Ela entende que precisamos ser os samaritanos da história, mas que as vezes, somos o homem caído na beira da estrada. Então: - Deixe que o amor de Deus entre no teu coração, e quando vir o teu irmão sofrer sozinho, estende para ele a tua mão. No mundo só se vive uma vez, e só se colhe o fruto do que se plantar. As mãos que você hoje ajudar a levantar, vão aprender a amar, e um dia levantar alguém. Que pode até mesmo ser você. (Quando eu chorar – Sérgio Lopes)

Referências bíblicas para este texto: Lucas 10, João 4, Salmo 111, I Reis 12, II Reis 17

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