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sábado, 3 de junho de 2017

Aprendendo a afundar


Toda e qualquer mudança é um avanço, um passo à frente, uma ousadia que nos concedemos, nós que tememos tanto o desconhecido.
(Martha Medeiros)


Pense num dia cansativo. As pernas estavam pesadas e a coluna parecia um anzol de tão envergada. Os discípulos tinham trabalhado como burros de carga para atender uma multidão de famintos. Fome de Deus. Fome de Pão.

Jesus era amado e odiado ao mesmo tempo. Os religiosos o acusavam de blasfêmia, e faziam planos secretos para prendê-lo e matá-lo. Os cidadãos da Galileia falavam sobre os milagres realizados pelo moço de Nazaré. Por onde ele passava, cegos descreviam em minucias as cores do arco-íris, aleijados bailavam de mãos dadas com o vento e mortos abraçavam seus entes queridos enlutados. O “boca a boca” se espalhou como fogo em pólvora. A popularidade de Jesus tinha alcançado seu apogeu. Por bem ou mal, Cristo estava no centro de qualquer conversa.

Jesus tinha escolhido a cidade de Cafarnaum para morar, e seu ministério se concentrava naquela região. Cada vez que saia à público para pregar, uma multidão o cercava. Jesus atendia a todos com muito carinho, mesmo quando não estava bem.

Houve um dia, em que Ele acordou enlutado. Uma ordem de Herodes havia sentenciado João Batista a morte. Jesus sentiu profundamente a perca de seu primo e precursor ministerial. Mas, a tristeza do Messias não comoveu seus seguidores. Naquela manhã, o povo estava particularmente eufórico. Ávidos por um milagre, a grande massa de pessoas empurrava Jesus na direção do mar. O Mestre pediu a seus discípulos que atendessem a multidão em seu lugar, e por longas horas, aqueles doze homens caminharam entre o povo, orando, aconselhando e expulsando demônios.

Para cada pessoa atendida, uma nova fila se formava. Percebendo o cansaço daqueles homens, e ciente da dificuldade que estavam tendo para controlar a turba, Jesus entrou num barco, e junto com seus discípulos navegou para a margem oposta.

Lago de Genesaré. Mar de Tiberíades. Mar da Galileia. O nome dado para aquela imensidão aquática variava de cidade para cidade. Sua imponência, porém, era unanimidade. Os pescadores o amavam e o temiam na mesma proporção. Incluindo, os discípulos de Jesus. Foi naquelas águas que Pedro, João, Tiago e André fizeram a maior pescaria de suas vidas. Ali, também, eles testemunharam o Mestre acalmar uma tempestade.

Com cerca de dezenove quilômetros de comprimento e treze quilômetros de largura, era um atrevimento chamá-lo de lago. Para os moradores da região, eles tinham um “mar” no quintal de casa. O Mar da Galileia tinha aproximadamente 167 quilômetros quadrados, e mesmo assim, a multidão não se intimidou em seguir a comitiva apostólica. Alguns de barco. Outros correndo pela areia da praia. Todos desesperados por um pouco mais de “Jesus”.

Quando desembarcou em Tiberíades, Jesus subiu com seus discípulos numa montanha, para desfrutarem de algumas horas de privacidade.  A calmaria durou pouco. Logo, a multidão os cercou novamente. O Mestre, então, decidiu trazer um ensinamento espiritual para toda aquela gente. Por muitas horas, a multidão alimentou seu espírito, e saciou a fome da alma. Ao fim do sermão, compadecido de seus ouvintes, Jesus desejou servir-lhes uma refeição antes da longa viagem de volta para casa. O problema, é que na montanha, não existiam cozinhas, mercados ou serviços de fast-food.

Entre a multidão, estava um menino precavido. Ele tinha trazido seu lanchinho particular. Cinco pães e dois peixinhos. Generosamente, ofereceu tudo o que tinha para Jesus. E o que aconteceu a seguir, todos nós sabemos muito bem.

Jesus deu graças e partiu o pão. Fez o mesmo com o peixe. E de repente, todos os discípulos se viram as voltas com cestos e cestos de comida. Cinco mil homens adultos, sem contar mulheres e crianças. Não é exagero dizer que haviam mais de quinze mil boquinhas nervosas por ali. E se sobravam “clientes”, faltavam “garçons”. Doze homens trabalhando para atender milhares de pessoas. O cansaço bateu pesado. E os nocauteou.

Ao fim do dia, os discípulos só queriam voltar para casa e dormir à noite inteira. Jesus, porém, tinha outros planos. Ele não perderia a oportunidade de passar algumas horas em oração naquela nela montanha. Mesmo que ninguém compactuasse desta ideia.

- Mestre. Vamos embora. Estamos todos muito cansados. A noite se aproxima e vem chuva forte por aí. E melhor irmos depressa, enquanto o mar está quieto.

Jesus estava determinado a não atravessar o mar naquela noite. Pelo menos, não de barco. Compreendendo o esgotamento físico de seus discípulos, se despediu deles na praia, ordenando para que o esperassem em Betsaida. Doze homens no mar e Deus ficou em terra.

Enquanto remavam afoitos, Jesus orava tranquilo. Sobre todos eles, os céus ganhavam contornos avermelhados, iluminando-se apenas pelo brilho aterrorizador dos relâmpagos. Ventos uivantes. Raios incandescentes. Trovões ensurdecedores. As ondas iam ficando cada vez mais violentas, e a água insistia em inundar o barco.  Doze homens em desespero navegando contra a natureza. Um barco surrado pelo tempo, contra um oceano impávido e imponente. Que chances teriam?

Do alto da montanha, Jesus orava por eles. De longe, comtemplava o sofrimento de seus discípulos. Mesmo assim, se mantinha impávido, focado em seu diálogo com o Pai. Não havia motivos para se ter pressa.

No mar, o sentimento era outro.

- Onde está Jesus?

- Porque Ele nos deixou entrar no mar?

- Será que o Mestre virá em nosso socorro?

Questões urgentes, sem respostas imediatas. O tempo de Deus difere do nosso. O Senhor não se abala com nossas preocupações. Ele não age por impulsos humanos. Deus nos observa no mar, mas não se impressiona com as ondas. Mesmo que nosso barco esteja à mercê das águas, Jesus não se apressa.

Ele é o Senhor do mar.
O Deus das ondas.
O Dono da tempestade.

Os discípulos remaram em desespero por mais de nove horas, e mesmo assim, não avançaram mais do que cinco quilômetros. A noite de descanso tinha se transformado em desespero e caos. Por mais que se esforçassem, pouco avançavam em direção a um porto seguro. Estavam presos em uma armadilha de águas turbulentas.

- Onde está Deus?
- Onde está Jesus?

Que questionamento mais corriqueiro. Mesmo que não o expressemos aos quatro ventos, muitas vezes reverberemos no íntimo de nossa alma, este sentimento de solidão: - Onde você está Deus, que não vês o mar bravio se levantando contra mim?

E na angústia desta pseudo-solidão, prosseguimos contra as ondas. Navegamos em canoas furadas, barcos com o casco avariado e veleiros com velas rasgadas. Só nos restam remos comidos por cupins, mas, falta forças nos braços para remar. E, as portas de uma tragédia anunciada, nosso grito desesperado faz tremer as estruturas do coração: -  Onde está Deus?

Já era quase de manhã, quando os discípulos perceberam que entre as ondas, um vulto sinuoso se movia com elegância. Não haviam dúvidas. Eles sabiam muito bem do que se tratava. Se olharam convictos nos olhos, e gritaram em uníssono:

- UM FANTASMA!

A cultura judaica sempre foi muito supersticiosa sobre anjos e espíritos. Segundo a crença popular, ver um fantasma era presságio de morte. Depois de horas enfrentando uma tormenta invencível, os discípulos já não tinham dúvidas do próprio fim. Se antes eles esperavam por um leito de hospital, agora tinham convicção da própria sepultura. E a assombração que os levaria para o além, já estava bem ali, ansiosa por sepultá-los sob um jazigo aquático.

Então, eles gritaram em desespero. Doze homens agarrados dentro de um barco, gritando como uma menininha confrontada por um rato.

E das ondas, retumba a voz imponente: - Não tenham medo! Sou eu!

Sou eu? Eu quem?

“Eu” é uma apresentação muito vaga. “Eu” pode se referir a qualquer pessoa! Todo “Eu” necessita de acréscimos. Adjetivos. Pronomes. Definições. Mas, não Jesus. Ele “é” o que “é”. O que há de vir, o que veio e o que para sempre já está estabelecido. Quando Ele diz “SOU EU”, o universo o reconhece. Quando Ele diz “SOU EU”, toda a criação presta reverência. Se os discípulos precisavam de uma identificação mais precisa, o mar já tinha se rendido a sua voz.


Sou eu.
O que caminha sobre as águas.
Aquele ao qual os ventos obedecem.
O que traz mortos de volta a vida.
O Verbo que se fez carne.
O próprio Deus entre os homens.
Sou Jesus.

Pedro precisava de mais provas. Ele sabia que a presença de Jesus lhe fazia uma pessoa melhor, mais destemida. Então, o pescador turrão propõe um desafio ao caminhante das águas.

- Se você é mesmo o Senhor, então mande que eu caminhe ao seu encontro.

Imagino que ao ouvir estas palavras, Jesus sorriu de contentamento. Ele gostava de desafiar a fé de seus discípulos, e os encorajava a viver o sobrenatural.  E Pedro se mostra um bom aprendiz. Ele se arma de fé e se dispõem a enfrentar o desconhecido. Sua ousadia, porém, está atrelada a uma condição. O discípulo audacioso precisava de uma voz de comando. Coragem respaldada pela obediência. Sua disposição para caminhar sobre as águas dependia de uma ordem divina.

- Venha Pedro. Estou te esperando.

Cansaço. Medo. Duvidas. Um dia de trabalho exaustivo e uma noite de desespero desesperançado. Cargas pesadas que colocavam em risco a embarcação e seus tripulantes. Pedro tomou uma intrépida decisão. Ele saltou do barco, e caiu em pé sobre as águas.

Lembro-me do velho colchão de água na casa de meus avós. Vez ou outra, os primos se desafiavam a ficar em pé sobre ele, enquanto os outros pulavam para “agitar” as águas. Manter equilíbrio era muito difícil. Não dá para dançar uma valsa, se o piso do salão é feito de gelatina.

Os pés descalços de Pedro tateavam a superfície gelada das águas. E então, vieram os "antes".

Ventos uivantes.
Trovões altissonantes.
Ondas galopantes.
Joelhos dançantes.

Bastaram poucos passos para que Pedro se lembrasse da bolsa que trazia a tiracolo. Cansaço. Medo. Dúvidas. Um dia de trabalho exaustivo e uma noite de desespero ininterrupto. E ele sentiu o peso. O chão de água de liquidificou. E neste instante, num ponto qualquer entre o barco e Jesus, Pedro começou a afundar.

Ufa...

Fizemos uma longa jornada, apenas para chegar até aqui. Acompanhamos Jesus e seus discípulos neste dia atarefado. Testemunhamos curas e milagres, poucos pães alimentando uma multidão e ouvimos os ensinamentos de Jesus. E por fim, ao invés de um merecido repouso após tanto labor, acabamos todos à deriva no mar. 

E o que nos trouxe aqui? 
Pecados e iniquidades?

Não! Trabalho e obediência.

Os discípulos se dedicaram ao Reino de Deus de corpo e alma durante aquele dia. Depois, entraram no mar exatamente conforme Jesus os instruiu. O resultado de tanta devoção foi a iminência de um naufrágio.

Você se identifica com este cenário?
Se sente injustiçado por Deus?
Olha em volta e não entende porque tanto mal lhe é destinado, mesmo se esforçando para ser bom com todas as pessoas?

Aqui vai uma dica. Pare de olhar para o mar e se concentrar no ímpeto das ondas. Eleve seus olhos para a montanha. É dela que vem o seu socorro. Não das rochas. Daquele que ora sobre elas. Enquanto lutamos contra as marés e ventanias, Jesus caminha despreocupado sob a chuva torrencial.

Da montanha, Ele nos observa.
Do caminho, Ele cuida de nós.
Das águas, Ele nos chama.
Venha ao meu encontro.
Aprenda a andar sobre as águas num dia de tempestade.

Se numa noite escura, em meio a um furacão, você encontrar coragem para saltar do barco e caminhar sobre as águas em direção a Jesus, certamente o mar nunca mais será um problema. Um obstáculo vencido definitivamente. É por isso que estamos aqui.

O mar, a tempestade, o cansaço, a demora... Tudo faz parte do preparo. Da prova. Do aprendizado. E Pedro aceitou o desafio. Se inscreveu no vestibular. Se apresentou para a prova. Sua coragem, porém, não o imunizou do medo. Sua ousadia não o tornou a prova de fracassos. E ele afundou.

Mas, em seu naufrágio, Pedro nos deixa uma lição valiosa. Ele nos ensina a naufragar com classe. Afundar para cima.

E pode acreditar. Esta é uma lição valiosa. Cedo ou tarde, todos naufragaremos. O mar se abrirá sob nossos pés. O barco será devorado por cupins infernais. O chão se tornará movediço. Estar de pé é um ensaio constante para o momento da queda. E é nestas horas, que devemos nos lembrar da lição ensinada no Mar da Galileia:

Afundar da maneira correta.

É bem simples, já que consiste em apenas dois passos fundamentais.

- Mantenha as mãos para cima enquanto afunda.

- Antes das águas lhe cobrir a boca, grite bem alto: - Socorre-me, Jesus!

(Este texto foi baseado nos relatos de Mateus 14, Marcos 6 e João 6)


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