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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Quando Deus se arrepende

Se alguém anseia pela sabedoria de Deus,
terá de renunciar à própria sabedoria e pedir a luz divina.
(João Calvino)


Noé pregou em um período de desmoralização social e degradação espiritual tão intensas, que Deus decidiu destruir a humanidade. Entretanto, uma chance de arrependimento seria dada ao homem, e Noé foi escolhido como portador de uma mensagem de salvação. Durante 120 anos, enquanto trabalhava em sua famosa ARCA, ele anunciava para toda gente, a destruição eminente. E apontava sua construção como o único meio de sobrevivência.

Numa análise superficial poderíamos dizer que Noé foi o pior pregador da história. Seu “ministério” durou mais de um século, ele só disponha de um único sermão e ninguém acreditou em sua pregação. Entretanto, quando Deus fechou a ARCA por fora, toda a FAMÍLIA de Noé estava dentro dela. Nenhum vizinho se salvou, nenhum compatriota creu, nenhum amigo lhe deu crédito. Mas, Noé salvou toda a sua família, e pela obediência de apenas oito pessoas, a humanidade não se extinguiu por completo (Gênesis 6, 7 e 8). 

Embora fascinante, a história de Noé nos aponta para um dos maiores dilemas teológicos existentes. Afinal, um Deus que segundo Números 23:19 e Malaquias 3:6, "não mente", "não se arrepende" e nem "passa por mudanças", neste caso, aparentemente, se "arrependeu" de sua maior criação.

- Então, arrependeu-se o SENHOR de haver feito o homem sobre a terra, e pesou-lhe o coração (Gênesis 6:6).

Para elucidar esta questão, em primeiro lugar precisamos entender que os desígnios do Senhor são inalteráveis, e que todos os seus planos, terão uma conclusão dentro do planejamento original, independentemente do ocorrido durante o percurso (Jó 42:2). É preciso ter em mente que Deus está numa linha temporal diferente da nossa. Enquanto vivemos o “CRONOS”, regulado por minutos, dias e anos, Deus habita no “KAIRÓS”, o tempo perfeito e completo, medido apenas de eternidade a eternidade.

Logo, nós aqui na terra, vivemos e analisamos os fatos de forma temporal, enquanto Deus visualiza passado, presente e futuro numa única perspectiva. Assim, em nosso entendimento, Deus pode até ter “mudado” seu modo operante, enquanto, na verdade, o desígnio continua intacto. Muda-se a ação imediata, mas o resultado a longo prazo será o mesmo. 

Quando olhamos para a Bíblia e nos deparamos com as expressões “Deus se arrependeu”,Deus voltou atrás” ou “Deus mudou de opinião sobre determinada questão”, estamos na verdade, enxergando uma postura de Deus diretamente relacionada as escolhas feitas pelo homem, e não reviravoltas mirabolantes no plano divino. Digamos que já existe “o ponto final", mas, quem decide como chegar lá, é a própria humanidade. Ou seja, Deus não muda, e de fato não se arrepende, mas, atua de formas diferentes dentro do “cronos”, dependendo da postura tomada pelo homem. Um belíssimo exemplo desta realidade, pode ser encontrado no livro do profeta Jonas.

Nínive foi uma das maiores cidades da Ásia, tornando-se a capital do poderoso império Assírio. Ganhou fama de sanguinária, pois era habitual que seus moradores invadissem e saqueassem outras regiões, matando com requintes de crueldade seus prisioneiros. Alguns métodos de tortura usais na cidade eram o decepamento de membros (mãos, pés, orelha), o vazamento dos olhos, o escalpo (retirado do couro cabeludo) e o depelamento (retirada da pele com a vítima ainda viva). Matavam seus inimigos os serrando ao meio ou jogando sobre eles óleo fervendo. Realizavam sacrifícios humanos a deuses pagãos e viviam imersos em feitiçaria, erigindo pirâmides com a cabeça das vítimas para demostrar seu poderio. 

A história de Jonas - “o profeta fujão” – é uma das mais conhecidas de todo Velho Testamento. Desde a mais tenra idade, aprendemos em classes de EBD, como este mensageiro de Deus, após ser incumbido de pregar a destruição de Nínive, embarcou num navio que ia na direção contrária, fugindo para Tarsis.  Porém, no meio do caminho, enquanto Jonas dormia tranquilamente no porão, uma tempestade de proporção épica se abateu sobre a embarcação. Os tripulantes desesperados, consideraram a tormenta como um presságio dos deuses, e iniciaram uma investigação entre os embarcados para saber quem havia causado tamanho furor em sua divindade. Lançando sorte, chegaram a Jonas, que acuado, assumiu a culpa pelo sofrimento de todos, e os aconselhou a lançarem-no ao mar. Foi quando um grande peixe o engoliu, e depois de três dias, vomitou o profeta na praia que tanto quis evitar. Finalmente, Jonas anunciou a mensagem de juízo. Saiu da cidade, sentou se sobre uma pedra e ficou esperando a destruição. Mas não foi exatamente o que aconteceu.  

Os moradores da cidade temeram aquelas palavras, e o rei ninivita conclamou um jejum de arrependimento, afim de que o poderoso Deus de Israel tivesse misericórdia deles. Homens, mulheres, crianças e até os animais, deixaram de se alimentar, num sacrifício vivo ao Senhor, buscando seu perdão e graça. Em resposta a esta ação voluntária, Deus suspendeu a terrível sentença. O profeta apregoou apenas o juízo para uma cidade perversa, anunciando a iminente destruição. Surpreendentemente, o povo ninivita, tomou uma posição de arrependimento, e aquela geração foi misericordiosamente poupada. Deus agiu com misericórdia e graça em virtude do quebrantamento espiritual daquela gente. 

Mas, a justiça de Deus não ficou esquecida nas prateleiras do tempo. Após 150 anos, um profeta chamado Naum, foi levantado por Deus para anunciar uma nova sentença contra a cidade (Naum 1:1, 3:1). E desta vez, Nínive caiu.

Em 612 AC, o rio Kusur transbordou, causando uma grande inundação que atingiu casas e palácios. Valendo-se do desespero ninivita, os caldeus invadiram a cidade, matando seus moradores ao fio da espada. A mensagem de Jonas se realizou piamente, em um tempo diferente do esperado. Dentro de nosso “cronos”, muitos anos se passaram. No kairós, o relógio sequer mexeu seus ponteiros. Pequenas intervenções temporais, não alteram o resultado eternal. Deus não se limita ao tempo. Nós sim. Se aos nossos olhos o Senhor parece ter mudado, Ele de fato, nunca mudou. Seus planos terão exatamente o fim que foi planejado. Os meios não alteram o final.

Numa alegoria simples, podemos dizer que os desígnios de Deus são como um rio caudaloso, e a ação humana, é uma pedra lançada nas águas. Ela até provoca ondulações localizadas que alteram o movimento da água num ponto especifico, sem alterar o curso do rio. O detalhe mais relevante, é que o rio segue, mas a pedra afunda. Nossas ações não alteram os planos de Deus para o universo, porém, determinam nosso destino.

Num aspecto mais abrangente, podemos citar o que muitos consideram o verso chave das escrituras, João 3:16 – “Por que Deus amou o mundo de tal maneira, que deu seu filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. ”  O plano de Deus aqui revelado, é que toda a humanidade creia em Jesus, e assim encontre a salvação. Ninguém modifica este princípio. A vontade primária de Deus jamais será alterada. Nenhuma força existente pode muda-la ou adapta-la. Mas, a decisão de crer ou não é pertinente a cada pessoa. Individualmente. Nossa escolha é a pedra. O plano da salvação é o rio.

Devemos ter consciência que amor e justiça são atributos da personalidade de Deus. Ambos agem de forma simbiótica, não havendo possibilidade de uma prevalecer sobre a outra. Deus é bom porque é justo, e é justo porque é bom. Ele estabeleceu diretrizes que indicam ao homem o caminho a ser seguido rumo ao destino por Ele planejado antes da fundação do mundo. Uma estrada certeira que conduz a salvação, onde não há erro e nem dolo. Infelizmente, o homem sempre escolhe atalhos (Jeremias 29:11).  Estas decisões erradas da humanidade, jamais irão alterar o plano original de Deus, mas, certamente, aceleraram um processo imediato de intervenção, seja para bem ou para mal.

Quando lemos os primeiros capítulos de Gêneses, testemunhamos o declínio moral e espiritual da humanidade. Nos dias de Noé, vemos Deus se confrontando com a terrível realidade dos homens que se tornaram maus e inconsequentes. Corromperam-se, e neste processo, corromperam a terra também. A tragédia do dilúvio, neste caso, era apenas uma consequência das próprias ações da humanidade. A sentença de que o pecado atrairia a morte sobre o mundo, já tinha sido lavrada no Éden, conforme registrado em Gênesis 2:17. Logo, Deus estava em seu total direito de tomar para si as vidas que lhe eram devidas em decorrência da calamidade pecaminosa que havia se espalhado pelo mundo. O dilúvio apenas “adiantaria” o processo. 

Mesmo assim, o Senhor ansiava encontrar arrependimento na humanidade, e por 120 anos, as portas da arca foram mantidas abertas para quem desejasse entrar. A escolha entre o “barco” e as “águas” foi tomada pelo homem, e não por Deus.

De qualquer forma, o plano original estava mantido.  Os desígnios de Deus convergiam para que a terra fosse povoada a partir de uma família, e neste caso, Deus mantém sua estratégia, apenas substituindo Adão por Noé. Muda-se os personagens, mas a história, do ponto de vista eterno, continua inalterável. Numa linguagem figurada, podemos dizer que Deus não mexeu no tabuleiro, apenas reposicionou as peças.

Os leitores mais atentos entendem que o “arrependimento sentido por Deus”, fala de sua tristeza pela condição humana. E este, foi de fato, o marco para um recomeço, onde o "sangue" que clamava na terra foi “lavado.”  Uma nova semente de bondade estava sendo plantada através de Noé.

As gerações seguintes cometeram os mesmos erros de seus antepassados, mas, cumprindo a promessa feita de retardar a destruição, Deus investiu ao longo da história em novos começos. Em Abraão, Ele iniciou Israel (uma nação para ser modelo). Em Jesus, iniciou a Igreja (um povo santo e separado para ser luz do mundo). Futuramente, iniciará em Cristo, um reino perfeito de paz e felicidade permanente, descrito nos últimos capítulos de Isaías. Apocalipse 21:1 nos fala de um novo céu e uma nova terra, já que o primeiro céu e a primeira terra tinham passado; e o mar já não existia mais. O plano divino chegará ao seu ápice. Neste dia, a porta da arca estará definitivamente fechada, mas, hoje, as “comportas” ainda estão escancaradas.

Se na antiguidade, a arca foi o meio proporcionado por Deus afim de que os que cressem escapassem da morte, hoje, essa “saída” é Jesus. Ele é a arca onde devemos nos refugiar, e esta é a mensagem que devemos pregar, independente de quem a escute e aceite.

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