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terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Campo de Sangue

Nenhum homem merece uma confiança ilimitada. Na melhor das hipóteses, 
a sua traição espera uma tentação suficiente.
(H. L. Mencken)


Judas Iscariotes é, sem dúvidas, um dos mais enigmáticos personagens de todo cânon sagrado. Citado sempre por último na listagem dos doze discípulos, nada sabemos sobre sua vocação e muito pouco de sua vida foi revelado pelos evangelistas. Num contexto onde suposições soterram os fatos comprovados, uma informação sobre Judas tem sua veracidade autenticada pelo próprio Cristo. Ele era amigo de Jesus.

O nome, “Judas” significa “abençoado”, e é um dos mais comuns no Novo Testamento. São pelo menos “sete” homônimos conhecidos. O fato de Judas ser identificado como “Iscariotes”, talvez nos indique o local de seu nascimento, Cariotes ou Kerioth, um lugarejo perto de Hebrom e muito próximo da Judéia, onde, provavelmente, teve seu primeiro encontro com Jesus. É possível também que ele ocupasse uma posição política na sociedade judaica, como membro do partido dos sicários, uma ramificação mais radical dos zelotes.  Porém, tudo o que se falar sobre as origens de Judas Iscariotes, tramitará no âmbito das especulações, pois todas as citações referentes a ele nos quatro evangelhos, ignoram os aspectos pessoais e sociais de Judas, e apontam apenas para seu declínio espiritual, que culminou no famoso beijo da traição.

Mas o que fez de Judas um traidor? Quais motivos levaram um discípulo devotado a conspirar contra a vida de seu próprio mestre? 

Os evangelhos de Mateus e Marcos fazem menção da ganância de Judas e sua forma materialista de enxergar o ministério do Cristo. Lucas, por sua vez, relata que as ações extremadas de Judas foram motivadas por Satanás, que literalmente, “entrou nele” (Lucas 22:3). João vai ainda além, pois não só ratifica a influência satânica sobre o discípulo renegado, como também aponta seu desvio de caráter e o liga a pequenos furtos (João 12:6).

Com este histórico, Judas se tornou um “ícone da maldade”, uma personificação pulsante da falsidade e da traição. No folclore brasileiro, o chamado “sábado de aleluia” (pós “sexta-feira da paixão”) é marcado pela “Malhação de Judas”, onde um boneco é amarrado pelo “pescoço”, surrado e queimado numa demonstração de aversão aos atos do discípulo traidor. Esta tradição, remonta a portugueses e espanhóis, e se espalha ainda hoje pela América Latina. Entre muitas comunidades cristãs da Alemanha, é expressamente proibido citar o seu nome, e em alguns dicionários, o verbete “Judas” tem entre seus significados expressões como “falso amigo” ou “traidor”.

Porém, apesar de todo o ódio popular demostrado por ele, Judas Iscariotes possui muitos simpatizantes. No século II, uma comunidade gnóstica redigiu o controverso “Evangelho de Judas”, que foi encontrado recentemente no Egito. Escrito em copta e datado com mais de 1700 anos, o manuscrito aponta Judas como um herói, pervertendo a narrativa dos evangelhos canônicos. Ali, Judas é apresentado como o mais próximo discípulo de Jesus e o único a compreender a verdade sobre ele. Cristo, então, teria revelado para Judas que estava “preso” em um corpo carnal, e informa ao seu discípulo que o mesmo estava destinado a ser superior aos demais homens, pois seria o responsável por “sacrificar o corpo que o vestia”. Assim, todo o plano tramado por Judas, na verdade era uma ordenança do próprio Cristo, que culminaria em sua morte e “libertação”. Assim, a atitude de Judas não teria sido uma traição, mas sim um ato de devoção e fé. Não é preciso nem dizer, que tal ensinamento se opõem a tudo que sabemos sobre Jesus.

Heresias e incongruências a parte, é inegável que Judas tinha o respeito e a confiança de todo os discípulos. Não haviam motivos para eles duvidarem de suas intenções. Um discurso de Jesus registrado em João 6:70-71, deixa muito claro que, entre os doze discípulos, havia um que seria dominado pelo mal. Porém, naquele momento, a identidade da “ovelha negra” não foi revelada ao grupo. Até porque, a intenção de Jesus não era acusar um deles, mas sim, alertar a todos sobre um perigo real oriundo das profundezas do inferno. As trevas os rodeava de perto.

Lucas 22:31-32, nos fala sobre uma conversa íntima entre Jesus e Pedro, onde Cristo lhe revelou que Satanás estava investindo pesado contra sua vida. Em bom português, o inimigo desejava “rodopiar” por aí, com a alma do discípulo esquentadinho. Jesus, então, o aconselhou a se fortalecer na fé, para que o diabo não encontrasse brechas em sua vida. Depois, pediu para que Pedro ajudasse seus irmãos (os demais discípulos) a se manterem fortes também. Esta preocupação de Jesus nos revela algo interessante. O foco de Satanás não era Judas, mas sim Pedro. Felizmente, Simão fechou as portas para o inimigo. Infelizmente, Satanás saiu a procura de uma outra porta que estivesse aberta.

O polemizado texto de João 12:6 faz uma vigorosa acusação ao caráter de Judas, revelando que ele desviava parte das doações recebidas para o seu próprio bolso. Segundo o texto, Judas se mostrou muito incomodado com o fato de uma mulher derramar nos pés de Jesus um frasco inteiro do mais caro perfume da época. Para ele, o correto seria reverter o valor em dinheiro, e depois, empregá-lo em obras de caridade. Mas, na análise do evangelista, esta preocupação altruísta, na verdade, escondia interesses escusos e pessoais. Fato é, que em pequenas atitudes, Judas revelava-se, no mínimo, materialista. Sua visão estava desfocada. Ao invés de adentrar na dimensão espiritual proposta por Cristo, ele se atava a questões mesquinhas e efêmeras, dando com isso, lugar a Satanás.  

Judas era um bom administrador, tanto que foi escolhido pelos demais discípulos para ser o tesoureiro do grupo. Por ele passavam os ganhos e os custos financeiros do ministério de Jesus. Como o volume de dinheiro que transitava nos cofres “apostólicos” era baixo, sempre margeando o vermelho, Judas demostrava habilidade de gerenciamento, provendo verbas para alimentação, hospedagem e para as obras de caridade realizadas pelo grupo. Porém, a maior virtude de Judas, também era sua maior fraqueza. Ele mudou o foco de seu ministério, inverteu as prioridades e passou a valorizar o “ter” mais que o “ser”.

Seu comportamento tornou-se inadequado, sua interpretação era questionável e seu julgamento, digno de repreensão. Ele enxergava os valores sem se atentar para as intenções, e isto começou a corroê-lo de dentro para fora, abrindo uma brecha espiritual para que Satanás lançasse seus dardos inflamados (Efésios 6:6). Enquanto os demais discípulos se desprendiam do mundo material e adentravam passo a passo o Reino dos Céus, Judas fazia um caminho inverso, afastando-se do espiritual e abraçando as coisas da terra. Com suas próprias mãos, Judas abria a porta de seu coração para o mal, e seu amor ao dinheiro, foi também a raiz de sua ruína.

O apóstolo Paulo nos advertiu que o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males, e que por cobiçarem o dinheiro, muitos desviaram-se da fé, atormentando-se com muitos sofrimentos (I Timóteo 6:10). Dinheiro é uma coisa boa, e possui-lo de modo nenhum caracteriza-se como um pecado. O problema começa quando nosso coração é aprisionado por ele (Mateus 6:21).  Satanás identificou a fraqueza de Judas e a potencializou. Da mesma forma, o inimigo ainda hoje tem rondado nossas vidas procurando nossas “brechas” afim de identificar nossa maior fraqueza e usá-la para “abrir” a porta de nosso coração, dando-lhe entrada.

Lucas 22:3 registra esta catarse maléfica sofrida por Judas. Ao contrário do que pensamos sobre “possessões demoníacas”, quando Satanás entrou em sua vida, Judas não virou o pescoço em 360 graus. Também não ficou com a pele viscosa ou com a voz mais grossa. Não esbugalhou seus olhos ou gorfou jatos verdes. Pelo contrário, assim que o diabo entrou em sua vida, ele continuou a ser um dos doze discípulos, jantando na mesma mesa, e ouvindo atentamente cada palavra proferida por Cristo. Por fora, nada mudou, e ele continuava um discípulo exemplar. Por dentro, Judas estava matando Jesus lentamente em seu coração. E quando a oportunidade surgiu, não hesitou em barganhar a vida de seu Mestre. O preço? Trinta moedas de prata. O valor que o império romano pagava por seus escravos.

Durante as discussões sobre a legalização do aborto no Brasil, um manifestante propôs que ao invés da retirada do feto por um médico especializado, uma arma fosse dada nas mãos das mãe, para que ela mesma, matasse seu filho na hora do nascimento. É claro que nenhuma mulher, por mais indesejada que fosse a gravides, concordaria com tamanha barbaridade. Aborto é uma coisa. Assassinato outra, muito pior. Algumas "culpas" são suportáveis. Outras, aniquilam a própria existência. Esta é uma ilustração perfeita para a apostasia espiritual, que em muito, nos assemelha com Judas.  Não temos a coragem para crucificar Jesus, cravá-lo no madeiro e observar impassível o sangue escorrer. Não somos carrascos. Não somos homicidas. Mas, o traímos constantemente, trocando Jesus por valores, bens e desejos materiais. E quando assim procedemos, não estamos o levando para a cruz também? Quantas moedas o mundo precisa oferecer antes de assinarmos o contrato de venda? Apontamos para Judas e censuramos a sua tabela de preço, mas a grande verdade é que temos vendido Jesus por bem menos.

A via-dolorosa até a cruz passou pela ambição de Judas. No jardim do Getsêmani, seu beijo colocou um alvo em Jesus, que culminou em sua prisão, julgamento e morte. Entrou para a história como um traidor que, não podendo suportar as consequências de seus atos, se esqueceu do quanto era amado e desejou profundamente morrer. Seu remorso desesperançado e seu coração tomado pelas trevas, se quer cogitaram a possibilidade de encontrar o perdão absoluto que emanaria da própria cruz. Judas se deixou dominar pela carne, dando ouvidos a voz do maligno. E estas vozes soavam tão alto, que ele mal conseguiu ouvir as últimas palavras que Jesus lhe disse no ápice da traição: -  Meu amigo! (Mateus 26:50). Judas abandonou Jesus. Jesus nunca abandonou Judas. A traição está na lista de Deus entre os pecados perdoáveis. Desde que haja arrependimento.

Outros escritos apócrifos justificam o ato de Judas como sendo uma tentativa de iniciar a revolução política tão desejada pelos judeus.  Segundo esta teoria, Judas acreditava que quando Jesus estivesse cercado pelos soldados romanos, finalmente se revelaria como o grande Messias, que livraria Israel da opressão estrangeira. Membro do partido dos sicários, Judas era um homem de atitudes extremadas, afinal, a maior característica de seus pares políticos era, exatamente, esconder um punhal sobre as vestes, para usado sem remorsos, sempre que fosse preciso. Assim, era necessário levar Jesus a uma situação extrema, para que Ele desse início a guerra contra o império opressor. Se de fato, esta fosse a intenção de Judas, ficaria ainda mais evidente o quão distante ele estava de compreender os ensinamentos de Jesus, que apontavam para o Reino de Deus, e não se detinham em questões terrenas. Neste caso, as portas continuariam abertas. Não se pode ocultar o sol com uma peneira.  Judas se deixou dominar pela carne e encontrou um fim trágico que o catapultou para uma eternidade obscura.

Mateus, testemunha ocular dos acontecimentos, conta que após a traição contra Jesus, Judas foi tomado por um remorso imensurável, e desesperado, correu até os príncipes dos sacerdotes e aos anciões judeus, e tentou devolver o dinheiro que tinha recebido. Esperava com isso, impedir a morte de seu Mestre. Em prantos ele jogou as moedas de prata na direção daqueles homens, enquanto se lamentava dizendo: - “Pequei, traindo o sangue inocente”. Porém, este gesto não comoveu aos líderes religiosos de Israel, que em resposta apenas disseram: - “O que isso nos importa? ”.

Acreditando que não havia mais meios de corrigir seu erro, Judas saiu dali e se enforcou. Então os príncipes dos sacerdotes chegaram à conclusão que era ilícito depositar aquele dinheiro no cofre de ofertas do templo, pois estava sujo de sangue. Após deliberaram, decidiram comprar com aquela quantia, um lugar chamado “Campo do Oleiro”, e o transformaram em um cemitério para estrangeiros. Posteriormente, o local recebeu o nome de “Campo de Sangue”.

“Aceldama” ou “Campo de Sangue” era uma propriedade que ficava localizada em Jerusalém, ao lado de um lixão público conhecido por Geena, para onde era levado todo o lixo da cidade, bem como as imundícias provenientes da limpeza realizada após os sacrifícios de animais. Agora, o fato mais relevante sobre este campo, é exatamente sua geografia, pois se tratava de um penhasco rochoso. Neste lugar também era encontrado um tipo de argila vermelha muito utilizado por oleiros, e daí talvez tenha se originado de fato seu nome.  A história por trás da compra deste lugar é tão interessante quanto o fato ali ocorrido (Mateus 1:1-8). Em Atos 1:16-19, Pedro diz que Judas adquiriu este campo com o galardão da iniquidade; e precipitando-se nele, rebentou pelo meio, e todas as suas entranhas se derramaram.

Juntando os relatos, é fácil a compreensão do histórico de compra daquela propriedade. Judas de fato morreu ali e o local foi comprado pelos líderes religiosos judeus que o transformaram em uma área de sepultamentos. Entretanto, o dinheiro usado nesta compra, pertencia a Judas Iscariotes. Logo, subjetivamente (e na interpretação de Pedro), ele era de fato, o dono do lugar. Quanto a causa da morte, não existem discrepância entre os textos, mas sim mudança na perspectiva do narrador. Podemos então dizer que Mateus trata do suicídio, e Lucas (em Atos) descreve as consequências deste evento. Judas de fato, correu até o “Campo do Oleiro” e se enforcou. Considere que nos arredores de Jerusalém, por questões geográficas e histórias, não existiam árvores de grande porte para viabilizar um suicídio, e, portanto, ele provavelmente precisou escolher uma árvore pequena, mas que estivesse à beira de um penhasco. Amarrou uma corda (ou algo semelhante) nesta árvore, atou-a também em seu pescoço e se lançou para baixo. Aparentemente, a corda se rompeu (ou o galho quebrou), de modo que o corpo de Judas despencou de uma altura considerável, e se arrebentou nas rochas abaixo.

E na morte, Judas nos deixa mais uma lição tenebrosa. Seu fim trágico está ligado ao Campo de Sangue, comprado com o dinheiro que ele recebeu por trair Jesus. Junto ao Campo de Sangue temos o Geena, uma área onde o lixo alimentava as chamas de um fogo que nunca se apagava, e onde os vermes não estavam dispostos a morrer. Vida miserável em meio a sujeira e ao fogo. Jesus usou este lugar para descrever o inferno definitivo, conhecido também como Lago de Fogo (Marcos 9:47-49 / Apocalipse 19:20). 

Você entendeu a gravidade da escolha de Judas?

Na verdade, Judas não trocou Jesus por trinta moedas, mas sim por um “Campo de Sangue” que trazia a tiracolo o Geena. Judas abriu mão de Jesus para abraçar o próprio inferno. E este foi, sem dúvidas, o pior negócio da história. Prejuízo eterno. E infelizmente, a negociata continua a todo vapor, com milhares de pessoas, diariamente, aceitando lances mínimos para abrir mão de Jesus, sem sequer, entender o que, de fato, vão “lucrar” com tal barganha. Alegrias momentâneas que gerarão lágrimas perpétuas. Sucesso irreal que culminará em fracasso total. Prazeres passageiros que se transformarão em dores eternais. Não vale a pena nem cogitar a troca.

Judas se deixou dominar pela ambição, pelo desejo, pela ganância, e com isso entregou a “VIDA” de bandeja para a “MORTE”.  Encontrou um fim trágico que o catapultou para uma eternidade obscura. Que trilhemos o caminho inverso ao deste malfadado discípulo, abrindo mão do mundo pelo céu, escancarando nosso coração para Cristo e fechando definitivamente as portas para Satanás.


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